domingo, julho 30, 2006

Deserto

Sonhei com o deserto. O deserto,
Sabes, esteve perto do que caminhei
Mas nunca o suficiente. Sonhei
E na areia não ficavam rastos. Nem sequer
Os teus.

E contudo, acordado, é a ti que vejo
Nas janelas iluminadas do meu pátio
Onde um dia por provocação
Demos um beijo.

Foi há muito? Foi ainda
Anteontem? Não estás aqui mas estás
Sei lá por quanto tempo em mim. Para sempre,
Talvez? Sim: por certo. Mas o que sei não chega
Para acalmar o pavor que senti
Ao sonhar-me no deserto.

Lagrima

Desliza uma lágrima pelo sulco
De uma das minhas simétricas rugas
É porque falo de ti.

Doi

Dói. E nem sequer
Estás muito longe. Doerá mais
Quando estiveres mais longe
Ainda?

Musica nova

Está aí música nova. Outros,
Amigos e amigas, a trouxeram. Ouvi.
Mas agora
Vou ouvir a que me deste na aurora
Do nosso encontro.

Heroi

Se eu não aguentar, não me julgues.
Não me desprezes. Não sintas que sou
Um pobre e fraco pateta. Olha que eu
Já troquei olhares com a morte
Já quis fazer do perigo o meu companheiro
Permanente de viagem. Olha que eu
Experimentei a minha força e a minha
Cobardia. E venci. Mas não sabia
Que podia haver alguém como tu. E por ti
Luz e abandono, desejo renovado de viver
Temor desconsolado de morrer.

Telemovel

O meu telemóvel jaz amortalhado
Pelos papéis de uma secretária em caos.
Ele é quase perfeito em forma
Rectângulos dentro de rectângulos
Um volume esbelto, acetinado, mate
E mudo.

sábado, julho 29, 2006

Horas

Já os passos estão gastos
como as palavras... cito o poeta
já os pássaros não trespassam
o ar que nos separa
preenchendo os espaços
da respiração que cessa
já a água espirra na tarde
quando as cigarras soam raras
entre os arbustos torrados do sol

Só a tua imagem persiste
quando tudo parece abrandar
e sei ao ler isto sorriste
porque existe! é verdade!
há mesmo duas pessoas separadas
que por muito que os ciclos acabem
não se esquecem das Horas passadas...

quinta-feira, julho 20, 2006

Musica

Lembro-me da história daquele homem que era surdo para a música e vivia a sua vida com a razoável satisfação de tudo o resto mas no arranhante desejo de experimentar ouvi-la. Um dia soube que poderia ser sujeito a uma operação que lhe daria audição completa por umas horas. Os médicos contudo desaconselharam-no, o embate psicológico era muito arriscado. Mas ele insistiu. Foi operado e levado a uma sala onde lhe aplicaram auscultadores. E ele ouviu música e extasiou-se. Sentiu que em breve se dissolveria num além-matéria em que se abriam horizontes nunca sonhados e contudo agora alcançáveis. Estava finalmente perto de perceber, perceber completamente. Bruscamente a música parou. O homem, irritado, tirou os auscultadores e exclamou: "porque interrompem a música mal começou?" E os médicos, olhando para ele com a piedade dos que diagnosticam, disseram "meu amigo, a música tocou por muitas horas... e não é possível operá-lo outra vez..." O homem chorou. "Antes julgava-me vivo. Agora sei que morri".
Eu não quero sentir isto. Eu quero manter viva em mim a música que és, quando, ao partires, não restar mais que a música que me deste.

terça-feira, julho 04, 2006

Quadro

No quarto onde nos amamos, por cima da cama
Está um quadro que fala de uma paixão de há muito tempo
Quando eu não sabia do amor mais que a ansiedade
E a recusa.

Tentei dizer nele coisas que só eu via
Outras surgiram que a pintura contou
Sem que eu soubesse como ou tivesse reparado sequer
Que se construíram por si.

Apareceste na minha vida tão mais tarde. E o quadro
Recomeçou a viver. Viste nele histórias que não sabia ter esboçado
Mas estão lá. Ou apareceram quando as apontaste
Talvez até se tenham entretanto desenhado.

E de repente olho para o quadro e nele estás tu
E aquela alegoria a um amor frustrado e triste
Desapareceu; em vez é quase um hino exaltado
Ao amor que me deste. E até humor se encontra nele.

Quero ter aquele quadro comigo enquanto viver
No sítio em que está, olhado da forma que os teus olhos
Me mostraram. E quando morrer,
Estejas onde estiveres, o quadro é teu. Farás dele
O que quiseres. Mas saberás que a magia que nele vejo
Só se criou pelo que foste.

domingo, julho 02, 2006

Se não fôssemos...

“Se não fôssemos dois homens”... o lamento da cantiga
Que um dia me mostraste e ainda ouvimos
É tornado vigoroso e afirmativo para nós
Que nisso encontrámos tudo o que nos faz
Homens que somos e nos amamos.

Houve noites em que pensei, no mar contínuo de murmúrios
Que é a minha voz perdida sem remédio no marulhar
De palavras de amor, que adormecias indiferente a esse som
Água inútil a embater no casco distraído de navio
A tua rota só tua e até, sargaços que eu fosse, vencer.

Mas não é por palavras que marcas o rumo certo
Que faz do meu caminho o teu. Mas antes pelos braços que me envolvem
Pelas pernas que se enlaçam nas minhas como mastros firmes
Das velas ao vento exacto que nos leva aos dois. E por me tocares
Sermos dois homens é bandeira desfraldada
Grito glorioso de batalha vencida,
Anúncio aliviado de terra à vista.

Ondulante

Os objectos pendem gritando sobre o vazio
na suspensão gratuita do espaço ocupado
neste ar baço que não cansa respirar
sempre fresco e renovado na intenção
pavio apagado, abraço e carência perdida

nada se sabe a bordo deste navio
que destino obscuro ou vontade escondida
se é acordado ou adormecido que perduro
ou se é na vaidade da brusca investida
que o sonho se torna intruso e cretino

mas que a impaciência voltou combalida
neste avanço inconstante, algo azedo
é uma certeza que confirma a eloquência
deste barco que zarpa relutante
na deriva aspirante do meu medo
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