quarta-feira, março 28, 2007

Diário

Muitas vezes tenho sentido o que sem palavras me tens dito:
Falar do que se sente pode ser mentir, mesmo quando a vida nos ensina
Que falar de amor a quem se ama pode ser mais verdadeiro que calar
Porque no que se diz está o que os gestos não conseguem, nem o abraço
Apertado e fundo que quer passar além da pele e do corpo.

No meu diário escrevo o que não ouso dizer-te, as dores que sinto quando morde
O medo do que sou e do que o tempo pode fazer ao que és. Ah, como dói prever que não
Te terei sempre mesmo que o meu sempre seja tão curto já! E temer essoutro que se esconde
Nas dobras do futuro ou se desenha claro a partir do esboço de um passado a que assisti
De tão perto quando estava tão longe na distância física! E que te poderia levar...

Mas também lá escrevo as coisas do meu amor por ti que, porque ninguém lerá, não correm
Esse risco mortal de perder a verdade se pronunciadas... É aí que sei que posso
Murmurar-te à vontade as minhas adocicadas tolices ou gritar para que se ouça longe
Porque o que lá está e que é só para mim é igual, igualzinho tal e qual, não muda uma palavra
E sublime é o mais comum adjectivo, espontâneo, distraído, autêntico e sentido.

E sei que, mesmo que digas “não me ames tanto” ou até o sintas sem mo dizer,
Porque a tua delicadeza não o consente, porque magoar não é parte de ti,
No fundo o meu amor te agrada e que as jaculatórias que numero para ser menos
Cansativas te enternecem. A cada passo, um gesto teu, um sorriso, um olhar,
Me fazem ser o rei do mundo, o príncipe inesperado de um grande amor.

E sei que não o mereci, que me foi dado, como se eu, um soldado do pelotão
Tivesse sido aleatoriamente escolhido para zelador de um templo onde se oculta
Inacessível e sagrado o que faz viver um mundo, a fonte de toda a luz.
Eu que não valho nada, que nunca fui herói, nem sequer aluno aplicado, sou agora
O guardião dos deuses, com o prémio inesperado de ser, obscuro, o maior dos homens.

domingo, março 18, 2007

Dead Combo

pedra... trago de cidra fria
preenchimento incompleto, percurso vago
e garganta vazia. sem regra nem traço.

E eu estou cego; mas há luz por todo o lado.
Sentou-se sem pedirmos, a teu lado
O que é uma caricatura do passado.
Fiquei indeciso no dizer que não, não sou eu
Quem fala destas coisas; é a música
Que ressoa como nova; o céu
É este louco estroboscópio ligado.

tenho o braço parado bem fundo
e é tão pouco o fumo que sobe
mas é com grado que o tempo rasga
as notas quebradas de um brado
riso insano o do homem que sabe
e bebe escorreito o vinho gelado.

Que vinho é esse? Bebe-o o som desvairado
Ou o silêncio que diz o que
Por muito que fale não digo? Calado
É a música deles que narra. Quem és
O que ouves esta música? E porque
Sinto que nela tens um segredo
Não desvendado?

onde se abriga a cadência do sonho?
que dúvida se dilui nesta melodia?
o caminho da certeza é uma troça
que obriga sem força a insistência
deste rito medonho, que se exclui
na incumbência obrigatória do dia...

Tira fotos, disse, e tiraste. Fica
O momento inultrapassável de nós -
Quem sabe o que vem a seguir ... a voz
Deles é agora a nossa. A nossa é melhor
Se fôr calada. Como o som de rios
Que nunca chegam à foz.

incompreensão transparente insegura
signos que vomito sem que a culpa
salte bruta na relva rente
letra que inaugura o poço da razão
que o erro da dupla ribalta
faz cócegas suaves no coração...

Quem tem olhos que veja! Aguenta
Os ventos que dão violência! Sê
Seguro terreiro do fado que sustenta
A dor que não se vê. Ah! ser capaz de saír
Daqui e esquecer que a noite acaba
E o dia vai nascer...

no improviso final que se faz círculo
a disposição confusa dos dedos
que são vínculo sabido crucial
na negociação do ângulo obtuso
saído do rasgão curioso
da fugida augusta do ser ruidoso

Quem me dera não ser eu... quem me dera
Ser o sonho sustentado que é só teu
E não temer nunca o que se espera.

sábado, março 17, 2007

Cidade

Voou, ainda agora, por aí, um momento,
Que, como tantos, bem o sei, não é para agarrar:
Como as palavras que digo sem pensar
É livre mas carregado de sentimento.

Foi a lembrança da cidade que me fizeste ver
As saudades de ruas e praças enfiadas
No colar que se faz das rotinas acertadas
De ir e vir calmamente, sem correr...

Aqui a cidade é grande e nela nos gastamos.
O metro é um escavar diário pró destino
Tanta gente e ninguém com o sol-menino
Que por trás de uma catedral levantamos

Por ti espero, agora, paciente, hás-de chegar
E dirás que canseira! Tanto tempo que se passa
que podia ser tão nosso, a passear,
Eu e tu neste estado em que estamos, de graça...

Mas esta cidade em que se perdem tantos
Que não são como nós, encantados
Também nos oferece pequenos recantos
Que somos descobridores nisso empenhados!

E hei-de te mostrar o que amo nela, o que vi
Quando ainda estava prenhe, sem o saber,
Do que tinha gerado e guardado para ti
Que vieste para que eu ta desse a conhecer.

segunda-feira, março 12, 2007

Retrato de família

É sábado à noite. A companhia que veio aqui
(E que foi agradável) já se foi. Tu estás, eu sei
Louco, numa festa!, na terra ancestral
Regressado dessa ausência que tanto me custou
Mesmo sabendo o bom que fora para ti.

Mas ainda é cedo para me deitar; vagueio então
Por estes locais virtuais, recordações já, as fotos
Que te tirei, os poemas que te escrevi. E vou
(Olha que os meus sentimentos aí são nebulosos!)
Até ao blog que tu e os teus amigos fizeram
(Que li antes, perversamente, com pensamentos invejosos...)
Para estar uma vez mais no que era quando
Todos os dias temia que por eles te perdesses de mim.

E há últimas imagens! Que não conhecia
E que são da tua despedida desses locais
Onde foste tão feliz! E até apareces, como tinha que ser!,
Num pequeno vídeo, feito estrela musical,
A extravasar o teu humor e a tua alegria!

E sem perceber porquê sou eu quem está saudoso
Vem-me um soluço de nostalgia
E a zanga comigo mesmo por ter tido inveja,
Por ter sido ciumento, por ser odioso
O veneno posto na tua inocente harmonia.

Talvez o que sinto agora seja redenção
Rir-me por te ver ali tão tolo a divertir-te assim
Entregue aos que te amaram como merecias
Pelo que foste para eles como és para mim
Lugares diferentes e o mesmo coração.

E lamento ter sentido o que senti
Lamento não ter estado, aqui, sempre convosco
Nas imagens que mandaste, e, em vez, ter sido
Mordido pela corrupta inveja por não ser um deles e lá
Não estar. E tenho saudades como se fosses tu a tê-las
Comovo-me a imaginar a tua nostalgia
Ao ver o retrato de família e a nova estrela da música popular
Italiana... Quem me perdoará?

domingo, março 11, 2007

Bem-vindo

(Em honra da tarde de seis de Março de dois mil e sete)

Bem vindo porque vieste; e o teu sorriso,
Ainda que misterioso, desmontou
Os meus pavores. Bem-vindo porque me deste,
Uma vez mais, o que tens de tranquilo. E eu,
Que sou este molho electrizado de nervos
E medo, acalmei. Ali, como se fossem novos,
Repetimos gestos antigos. E o meu choro não é
Já o do terror, mas o do reencontro, como quando
Os soldados vinham da guerra e quem os esperava
Não sabia sequer se ainda os reconhecia. Bem-vindo.

O tempo é um grande escultor, dizia ela
Que sabia destas coisas – era velha – e contudo
Nela esteve sempre o olhar maravilhado pelo que pode ser
Um amor como este. Narrou-o. Mas também
Falou de separações inevitáveis quando o fado
Manda que o amor acabe. E isso foi sempre o que li
Com mais atenção. Mas não foi hoje que aconteceu. Bem-vindo.
Hoje foi dia de festa para mim, o atormentado,
Que, por desgostar de si, desconfiou. Mas agora e aqui
Iluminas, por ti só, a esperança que voltou.
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