sábado, fevereiro 17, 2007

Discreto

Abri: o que entrou era lixo, porcaria
Gente que pensa em contas no dia dia
E troça dos que amam sem pensar
É nosso o que é nosso e assim está bem
Arte é para os outros, mostrar
O que somos, seria para nós discretos
Uma forma de exemplificar: mas não é
Preciso que mostremos o que de delicado
Temos: eles não sabem e não querem.

Mas nós somos mesmo assim, independentes
Do que dizem e pensam esses outros,
Doentes de si próprios e sem conhecer
O princípio do que nos rege. E de que nem sabemos
Os contornos certos. Mas está lá
Discreto e contido mesmo que digam
Que é sentimento ou coisa desprezível
Como o sentimento pode ser quando não certo.
Mas este é nosso e exacto. E guardado
Deverá ficar porque nosso se mantém
Mesmo que lá fora não haja lugar nem tempo
Como aquele que acabámos por sem saber
Inventar como nosso e firme nisso.

domingo, fevereiro 11, 2007

Episódio

Vou-te contar: estou aqui,
Bem acompanhado, tenho que o admitir,
Há um passado que finalmente desmontámos
E neste momento preparamos o seu futuro
O do que me faz companhia, agora.

Falamos com a calma dos anos sedimentados
De coisas bem práticas como a sua arte
E da música que ouvimos. E no entanto
É sobre brasas que estou. Daria tudo
Sacrificaria a estimulante companhia
E a conversa que tira de mim o que sei
Por uma coisa tão simples, tão simples,
Como uma mensagem no telemóvel,
Qualquer coisa que dissesse “também eu
Aqui, onde estou, e bem acompanhado,
Acho insuportável não ser contigo que estou”. Mas isso
Sou eu a desejar; e quando se deseja
Desta forma pungente e final, ele,
A companhia inteligente e simpática que é
Deixa de ser: é só em ti que penso. Mas
Olha! Que grande novidade! Afinal
É só em ti que penso, só ou acompanhado,
De dia, de noite, a dormir, acordado
E que posso fazer para resistir a isto...
Ou é amor que aceitas e retribuis ou então,
E nisso temo ter que ter cuidado,
Doença que me levará. Sem ti não há
Futuro ou presente, até mesmo o passado
Fica por ali, o tal que daria histórias
Para contar contínua e alegremente
Se fosses tu quem as ouvisse a meu lado.

Inocência

Ele falou-me dos seus amores traídos e de
Como, por isso, confiar se tornou tão difícil.
Ah! respondi, como te compreendo! Também eu
Tenho tanta dificuldade em aceitar como tal
O que simples se apresenta! É que logo construo
Os instrumentos que me levam à tortura permanente...
Sim, diz ele, não telefonou nem respondeu logo
Às minhas mensagens... E eu desespero...É isso!

Concordamos então que temos de reaprender
A inocência que os do passado nos fizeram perder
Para acreditar agora, para confiar, calmos
(Calmos?! E os dois rimos com amargo conhecimento)
Que quem nos ama agora não precisa de nos dizer
Como nós, que já sofremos, precisamos de ouvir:
Para sermos de novo inocentes tanto trabalho a fazer...

Mas isso, digo eu, já não é inocência... Isso poderá ser
Quando muito sabedoria... E poderá a nossa ser
Suficiente para não destruir o que amamos? Ficamos
Calados. O limpa vidros do carro em que vamos marca
Monótono, o longo caminho que ainda há a percorrer
Companheiros de umas horas, cúmplices
De um pequeno e frágil íntimo momento.

Sábado

Hoje é Sábado e até tinha companhia
Para me dissipar pelos bares da cidade em álcoois mais caros
Do que acabo por tomar aqui, só,
Com um que, como eu, também sente
Que não é lá que se resolve o seu dia.
Afinal – nem ele és tu nem eu
Sou remédio para o que o destroçou.

The urge

“The urge” disse ele, o homem
Que está ali agora e foi
O rapaz diáfano que fotografei
Há um quarto de século. “Qual é
A palavra em português?” Nem ele
Nem eu sabíamos – mas hoje
Vinte e cinco anos depois, ele compreendeu
O que me levou a fixar em imagens de celulóide
A sua efémera beleza.

Labília

Labília chamam eles, os que conhecem
A terminologia,
A uma tal vontade de chorar.
E assim se torna clínica esta coisa simples
Que vem simplesmente de amar.

Espada

I
Não estamos em guerra!, dizes tu
Mas a guerra é que está aí à espreita
E escolhe os parceiros para o triste jogo que inventa
Ou então pior, joga à cabra cega: “quem perdeu
Morreu”.

II
Se nos é pedido que desembainhemos
A espada que sonhámos fosse arado
Mal sucede por não fazê-lo ao que nos é dado:
Pessoas, bens, valores, que não defendemos.

E é nisso que assenta a sabedoria
De esmagar, impiedoso, ressentimentos
Esses monstros venenosos que se escondem
Atentos, nos lugares designados para abrigar
A alegria.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Oráculo

Leio oráculos e sinais e não entendo
Há tempestades e mares a atravessar para o homem nobre:
Mas quem é superior ou inferior neste jogo?

Nada percebo do que leio mas sei o que temo
E contudo não posso mais transformar em doméstico utensílio
A espada que tenho que brandir. A paz é a boa quando a guerra
Está vencida. Desventurado o que ficou com a espada na bainha
À espera do momento em que não seria requerida.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

lhasa

puxa as cordas vigoroso, genica!
que a mulher canta de dentro do túmulo
que canto harmonioso este que espevita
e até me faz reaver a fé, que cúmulo

ressonância que trespassa a janela
invade o mundo e ninguém sabe o que é.
encanto? a vaidade ameaça a voz dela
enterrando, em vão, bem fundo o meu pé

a força que me estaca contra o chão
do existir nos vales desta cidade
e no som penoso desta canção

violência que me amarfa sem piedade
prazer doloroso! são minha fé...
é pena que a gente não sabe o que é!
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